segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Meu Nascimento na Capoeira

O ano era de 1974. Eu estudava no Centro Educacional 04 de Sobradinho (cidade satélite de Brasília) ou, simplesmente, “Centro 04”.
Na minha turma de aula, o meu melhor amigo era o Clécio Oliveira do Carmo. Me lembro, também, que na minha turma tinha o Geraldo, Pedro Berto e outros que já não me recordo o nome.
O Clécio, que sentava invariavelmente ao meu lado, me falou um dia que estava praticando capoeira, ali mesmo no Centro 04. Era grande seu entusiasmo ao falar daquela atividade e sem nem mesmo saber ao certo do que se tratava eu perguntei: tem vaga para mais um nesse negócio? O Clécio disse que sim, que me levaria para ver uma aula. Mas nesse mesmo dia me levou em sua casa para me mostrar alguns movimentos que já estava aprendendo. Me mostrou dois movimentos: Suicida e Aú agulha. Lembro que ele riu muito quando eu tentei fazer esses movimentos que, obviamente, saíram todos mal feitos, tortos e hilários, provocando em nós dois muitos risos... Bom, com risos e cenas cômicas eu dava, dessa forma, meu primeiro passo para conhecer a capoeira que se tornaria a linguagem que ,através da qual, eu passaria a escrever a história da minha vida.

Marcamos para a outra semana a minha primeira aula no grupo de capoeira do Centro 04.
Quando cheguei me lembro que a sala estava cheia. A turma era composta, na grande maioria, por jovens estudantes daquela escola com idades compreendidas entre os 10 e 13 anos. Talvez um ou outro com 15 anos. Eu tinha 10.
Vestiam calções, malhas, pijamas, calças azul marinho (parte do uniforme do Centro 04 que era composto por calça azul marinho e camisa branca) e, por regra, ninguém usava calçados ou alguma camisa. E fiz minha primeira aula de calça jeans, sem camisa e sem calçados.

Nesse dia, quem estava dando aulas era um magrelo alto e branco de nome Marcos. Seu corpo parecia de borracha e era, aparentemente, o mais velho. Não sei bem a origem capoerística do Marcos mas na semana que antecedeu eu conhecer a pessoa que se tornaria meu mestre foi o Marcos quem deu aulas.

Dois dias eu treinei com o Marcos até que o Mestre Cordeiro (meu primeiro, mas não único mestre) apareceu para assumir as aulas.

Era muito sério e não falava muito. Falava o bastante para entendermos suas regras e forma de trabalhar. Era uma disciplina meio militar. Talvez fomentada pelo fato de ele ter sido, ou ainda era, nessa época, militar.
De qualquer forma tínhamos um código de conduta muito rígido baseado em silêncio nas aulas, respeito ao mestre e aos colegas, higiene, assiduidade, participação nas aulas, atenção e crescimento.

Tudo aquilo representava para nós uma aliança muito forte e que facultava a cada um o sentimento de cumplicidade própria dos grupos de pessoas que comungam dos mesmos objetivos. Fazia com que nos sentíssemos parte de algo importante. Éramos “a turma da capoeira. Orgulhosos por pertencer ao grupo de capoeira do Centro 04 e durante o intervalo das aulas (o recreio) não falávamos de outra coisa a não ser da capoeira e do mestre Cordeiro. Foi como uma febre coletiva. Uma paixão arrebatadora como amor à primeira vista. Meu pai (Ênio Souza) muito sábio, ao ver o meu “fanatismo religioso” pela capoeira me fez prometer que primeiro viria meus estudos e depois a capoeira. “Meu filho sou baiano e o que você está praticando é da minha terra. Mas entenda que sem estudo você não chega em lugar algum. Se quer realmente jogar sua capoeira apenas por amor, estude e tenha uma profissão para nunca precisar sobreviver da capoeira”. Essa conversa calou fundo na minha alma como essas profecias que lemos e sentimos algum arrepio. Meu pai falou isso para mim quando eu tinha 10 anos e hoje com 45 ainda sinto o peso do conselho e, ao mesmo tempo, alívio por o ter seguido e um lamento pelos que optaram pelo outro lado porque, infelizmente, são bem poucos os que podem, felizmente, ter uma boa vida e independência financeira conciliando ao mesmo tempo o amor à capoeira com a profissão, também de capoeira.

Amo a capoeira tal e qual em 1974 e, felizmente, tenho meu diploma e minha profissão. Obrigado meus pais. Onde quer que estejam, do fundo do meu coração, obrigado...

Durante suas aulas o mestre Cordeiro mantinha a disciplina com martelo nas costas para quem conversasse durante a aula ou pagando apoios de braço (nunca menos de vinte) como forma de castigo. Aceitávamos e tentávamos não “vacilar” com o mestre. Também devo dizer que o mestre, com essa coisa do martelo nas costas, nunca magoou ninguém seriamente. Era um castigo de caráter mais psicológico do que físico. Mais humilhante para quem recebesse o martelo do que doloroso. Pois a vergonha de ser exposto no meio da roda, com os braços abertos e receber um martelo nas costas era o que fazia esse aluno se esforçar muito mais para não acontecer outra vez. Um dos meus martelos, eu lembro, foi numa ocasião em que tive que passar duas semanas sem poder aparecer nas aulas. Cheguei perto do mestre e lhe disse que estava “uns dias fora”. Ele apenas me disse: “Então vai ganhar um martelo para ficar dentro”. Não me doeu nada aquele martelo, mas o riso da turma foi mais forte. E durante muito dias ainda ouvia uma ou outra ironia fazendo alusão ao martelo para eu ficar dentro...

Dos meus companheiros de turma da capoeira eu posso, ainda, me lembrar de alguns nomes: Clécio, Geraldo (Bencinha), Marcos (Espinhela e/ou Borracha), Bené (Mamaema), Pedro Berto (que era, na minha opinião o melhor da turma. Eu invejava muito ele. E nunca disse isso até agora. Fica o registro, Pedro Berto: Eu te invejava muito e tentava ser tão bom quanto você. Ah, e tinha um medo danado de você me dar um sufoco na roda... o cara era muito bom!!! Deus te abençoa onde quer que esteja agora.), Dedinho, Afonso, Japão, José Ferreira (em memória) entre tantos...

Em 1974 as informações sobre capoeira e material didático eram extremamente escassos. Haviam pouquíssimas coisas que tínhamos acesso e o que encontrávamos era referências sobre a capoeira em algum livro sobre folclore brasileiro e que catalogava a capoeira como um dos elementos do nosso folclore ao lado de lendas do Saci-Pererê, Caipora, Iara, Curupira, etc.

As aulas do nosso mestre Cordeiro eram complementadas pelas aulas esporádicas do mestre Mão de Ouro que nos dava formação de Capoeira Angola. Não a Angola que conheço hoje com essa linhagem de mestre Pastinha, indumentária e código comportamental. Era a Capoeira Angola do mestre Mão de Ouro. Ele usava graduação, não usava calçados em suas aulas, o uniforme era branco mas sua capoeira, seu trabalho era de capoeira de angola, como ele mesmo afirmava. Não posso agora fazer algum tipo de comparação sobre a capoeira do meu mestre e a capoeira do mestre Mão de Ouro, apenas posso afirmar que eram duas formas distintas de ensinar e ritualizar.

O Mestre Mão de Ouro tinha uma mística muito forte no seu trabalho. Nós gostávamos muito do nosso mestre. Mas os alunos do mestre Mão de Ouro, simplesmente, o idolatravam. Era como um régulo de uma tribo. Sua imagem transmitia força, respeito, medo e sua vida era, também, capoeiragem. Havia uma espécie de cumplicidade amiga entre esses dois mestres. Às sextas-feiras, dia de Roda, o mestre Mão de Ouro trazia seus “meninos”.. Caramba... que turma boa!.. não havia um aluno dele que não soubesse jogar muito bem, tocar os instrumentos e demonstrar aquela adoração pelo seu mestre.

Lembro que quando o mestre Mão de Ouro saia da roda para descansar, um aluno dele pegava numa capa de LP e abanava para fazer um vento refrescante para o mestre. Não entendíamos aquilo, mas acontecia, simplesmente com muita naturalidade.

Da turma de alunos do mestre Mão de Ouro eu tenho que fazer referência a um especial: o Diabo Louro. Cria do mestre, aluno dedicado e contramestre da Escola de Capoeira Angola do Mestre Mão de Ouro. Um verdadeiro discípulo...quero te dizer, Diabo Louro, que você foi e continua a ser uma das minhas referências na capoeira e ainda outros que ainda recordo o nome: Bodinha, Gerson, Gilson e Pombo...Obrigado a vocês pela inspiração.
“saudade grande, que vem lá dentro do peito, não sei explicar direito por que vem do coração”...

2 comentários:

  1. Clécio Oliveira do Carmo26 de fevereiro de 2010 às 18:49

    Inesquecivel amigo Umoi
    Lembro, com saudades de muitos momentos que vivemos juntos. Dos seus desenhos com personagens criados ou até da Margarida (seu violão). Fico muito feliz vendo o importante trabalho que você realiza, difundindo com talento e competência a capoeira para o mundo. Capoeira, por sinal, que sempre foi verdadeiramente a sua vida. Você é para mim e para muitos, referência de capoeirista e de ser humano. UM VERDADEIRO MESTRE!
    QUE DEUS TE ABENÇOE E TE GUARDE!
    Clécio Oliveira do Carmo

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  2. Clecio, meu irmaozinho querido. Nunca me esqueci por um so momento do dia em que voce me colocou nesse caminho da capoeiragem. Me lembro como se fosse ontem de voce falando comigo do mestre Cordeiro e me ensinando o au agulha e o suicida. Acredite, amigo, que no momento que escrevo isso, me vem lagrimas por emocao da doce lembranca.
    Espero um dia traze-lo aqui em Portugal e apresentar pra toda gente meu amigo que um dia me pegou pela maos e me colocou no caminho dessa arte que se tornaria minha vida.
    Deus te abencoa, tambem, Clecinho.
    Com muita amizade e respeito. Seu amigo de sempre,Umoi.
    Ah, voce ainda gosta de "fiu-fiu"??? nao me esqueco...

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