terça-feira, 20 de outubro de 2009


1976, Centro de Desenvolvimento Social de Sobradinho. Eu e meu companheiro Nilsao num jogo bom.
Tocando o berimbau o Aluizio. Bons tempos, boa capoeiragem. Totalmente alheios a logos, nomes, graduacoes e estatutos.
Obrigado Nilsao, por esse jogo e os que ate hoje fazemos.
Obrigado Aluizio por ter me presenteado com essa foto e por ter tocado o berimbau nesse jogo.

Nosso Grupo

Logo oficial do Grupo Uniao na Capoeira. Criado em 9 de Junho de 1983 por Umoi Souza. Hoje extendendo as atividades por Portugal, Noruega e Canada, alem da linda capital brasileira Brasilia. Terra linda, magica e de boa capoeira.

Capoeirices...

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Cultura da Capoeira - Autor: Umoi Souza

A CULTURA DA CAPOEIRA É BRASILEIRA?


A pergunta é interessante e pertinente face ao quadro atual, de expansão além-mares, da capoeira.
América do Norte, Europa, África, Ásia, Oriente Médio são locais no mundo onde já se toca berimbau, se canta ladainha e se joga capoeira além da América do Sul.
Se levarmos em conta de que os sentimentos não são patrimônio cultural de nenhum povo, teremos que considerar que o arrepio do corpo, provocado por um berimbau bem tocado ou o sentimento do axé de uma roda é próprio não do brasileiro, do africano, etc.. mas, sim, do “capoeirista”. Esse, sim, tem todo um código comportamental adquirido pelo tempo passado dentro da capoeiragem sendo, esse código, um elemento formador de uma “cultura capoeirística”.
Logicamente, a língua utilizada nas músicas da capoeira é, invariavelmente, portuguesa e é onde se detecta termos bem adaptados ao jogo, assumindo um conotação própria dentro da arte. “jogo na manha”, “jogo de compadre”, “mandingueiro”, entre outros. Já, inclusive, existe um dicionário onde estão catalogados, alguns dos termos próprios utilizados na capoeira (LIMA, Manoel Cordeiro. Dicionário de Capoeira. Brasília, 2005. Edição do autor. 144p. il. Literatura brasileira.)
Lima reuniu mais de 1.000 verbetes, dos quais 23 conceituam o termo capoeira.
Muitos verbetes foram enviados a título de cooperação para o autor mas que revelam ser de caracter pessoal e não representativos da capoeira como um todo. Sugerem mais como uma “gíria” local do que uma palavra comum a todo capoeirista, como no caso de “mandinga” ou “axé” por exemplo.
É muito comum ouvirmos de algum mestre de capoeira o que ele acha essencial para a boa formação de um capoeirista.
Assim como, no início desse livro, existem várias respostas, pessoais, para determinada pergunta, também, encontraremos várias receitas para se formar um bom capoeirista onde muitos elementos são, inevitavelmente, comuns de uma “cultura da capoeira”.
Faço, agora, alusão a uma antiga música de capoeira que faz parte de um excelente trabalho discográfico chamado “capoeira basam”. A letra diz assim: “para ser bom brasileiro, tem que manter tradição, tem que saber cantar samba e tocar bem violão. Berimbau e reco-reco, é preciso aprender, praticar a capoeira, pra saber se defender...”
Bom, na música, o autor dá uma pequena receita para se ser “um bom brasileiro”.
Se mudássemos o “bom brasileiro” para o “bom capoeirista” será que o restante da música seria o mesmo? Ou seja, para ser um bom capoeirista tem que manter tradição? O bom capoeirista tem que tocar bem violão?
Afinal quais sãos os ingredientes necessários e essenciais na formação do bom capoeirista? É claro que para a resposta a esta pergunta a pessoa que se propuser a responder, terá, em princípio uma definição própria, também, do que seja o bom capoeirista. Mas soltemos perguntas à consideração do leitor:
1. é preciso ser brasileiro?
2. é preciso ser negro, branco, azul, verde??
3. tem que ter um mestre?
4. tem que ter alunos?
5. tem que ter trabalho?
6. tem que viajar?
7. tem que ter histórias para contar?
8. tem que ser africano?
Se mesmo hoje em dia, nos encontramos num dilema para darmos à capoeira uma pátria-mãe permanecendo essa antiga questão sobre ela ser brasileira ou africana, como poderemos, então, definir a nacionalidade ideal do praticante, aspirante a ser “um bom capoeirista”?
Viajando pela Europa (e não só), pode-se encontrar excelentes trabalhos de capoeira, com excelentes alunos que jogam bem, cantam (em português), tocam bem o berimbau, atabaque, pandeiro e se emocionam dentro da roda. E além de bons alunos, já encontramos bons professores de capoeira de nacionalidade diferente da brasileira.
Contudo, há de se fazer uma referência ao fato de quê o professor estrangeiro, na grande maioria, passa a assumir grande parte da cultura brasileira, inclusive elegendo um sotaque brasileiro para definir seu português e, muitas vezes, caindo na armadilha de estar usando determinadas expressões que não conseguem contextualizar de forma pertinente ao assunto de alguma conversa em português.
Concordo e admito que os elementos formativos da capoeira, como arte, é brasileiríssima na sua heterogeneidade. Mas ao aprofundarmos na própria história da formação do provo brasileiro e sua cultura, verificamos, felizmente, o rico legado deixado para nós por muitos povos, de diferentes línguas, comportamentos e costumes e que nos serviram de base sólida na formação dos nossos próprios costumes, crenças, folclores, crendices, nos afirmando, neste contexto de brasileiros.

Porém, no bojo dessa cultura capoeirística eu penso que podemos, dizer que é de comum acordo de que o “bom capoeirista” é aquele que:
Tem tempo de prática (quanto?)
É viajado (e aqueles que não têm condições?)
É conhecido (e os que preferem o anonimato ou uma maior privacidade?)
É mandingueiro
Tem trabalho realizado (que tipo?)
Forma alunos
Toca bem os instrumentos
Sabe cantar e compor
Tem histórias para contar
É honesto
É trabalhador
Etc.


Um passado não muito distantes ainda nos proporciona alguns registros históricos, flagrados pelas objetivas de algum fotógrafo anônimo e, possivelmente, imparcial.

A isenção deste fotógrafo nos deixa claro e sem contra argumentos sobre a característica, acredita-se, sempre expontânea, existente nas rodas de capoeira.

A bateria que dava o ritmo e harmonia à roda, era apenas a bateria sem, aparentemente, uma regra definida sobre a exata localização dos instrumentos que animavam o jogo.

Berimbaus, pandeiros, atabaques, agogôs e outros se complementavam mantendo o ritmo , com certeza, ditado pelo berimbau, mas sem, que para isso, tivesse que, necessariamente, se criado um local exato de onde cada instrumento deveria ficar. (ilustrar com fotos)

Ao voltarmos para o passado em busca de fontes de conhecimentos, nos deparamos com uma situação paradoxal na medida em que reconhecemos enormes diferenças entre um passado que tenta ser a confirmação do presente. Estes dois pólos em termos de continuidade e manutenção do que hoje se chama de tradicional não se complementam e vamos encontrando fatos isolados ou acontecimentos históricos independentes entre si que, no conjunto, pode nos dá uma explicação mais coerente para o que, hoje, se chama de tradicional. Fatores como economia do país, nível de escolaridade, condição sócio-econômica, crença, etc., têm um papel bem forte nos caminhos escolhidos pelo praticante.

No meu ver, um capoeirista de uma cidade satélite do Distrito Federal, por exemplo, tem valores e comportamento, enquanto capoeirista, um pouco distintos de um capoeirista da mesma faixa etária e tempo de prática e morador do Lago Sul.

O paralelo proposto por mim não tem a mínima intenção de comparar para se ter um resultado de “melhor”, “correto” ou mais “tradicional”. Tento firmar minha convicção de que quanto mais falamos de TRADIÇÃO na capoeira, mais encontramos diferenças e contradições flagrantes em quem se apresenta como “defensor das tradições da capoeira”.

No meu ver, a diferença, por ela mesma, é dentro da capoeira um dos elementos que mais contribui para a riqueza e beleza do jogo.


Os nossos velhos mestres em tempos foram jovens praticantes, “meninos” que eventualmente se espelhavam nos velhos mestres do seu tempo, com a agravante de que quase não terem tido contato com possíveis registros deixados por fotos, filmagens e outros, limitados obviamente pela tecnologia existente, sendo instruídos pela passagem de testemunho nas palavras de quem ensinava.

Suas fontes de “pesquisa” e “estudo” eram pela via oral. Pelo que se ouvia dos velhos de então, relatando experiências passadas, histórias de valentia e, acredito, com alguma pitada de crendice popular, muitas vezes exaltando a capacidade extraordinária de alguém ou o poder inexplicável que algum indivíduo tinha de desaparecer ou ser autor de metamorfoses dignas de efeitos especiais cinematográficos.

Cada praticante teve seu nascimento na capoeira em algum lugar do mundo e inevitavelmente aprendeu o “idioma”, a língua, o “capoeirês” próprio deste local.

Assim como os linguistas procuram as raízes etimológicas de alguma língua em estudo, também o capoeirista sente, em algum momento, a necessidade de um estudo da sua origem em função da sua “linguagem” ao exercer o direito de ser praticante.

Procura saber o significado e os “porquês” do bojo de seu conhecimento.

Tradição, folclore, hierarquia, herança, costume, criação, inovação e invenção são palavras que se misturam e confundem o capoeirista menos atento nas “explicações” históricas da capoeira, muitas vezes e infelizmente, manipuladas.

Na maioria dos casos, essa mistura é usada, ao meu ver, de forma conveniente, fomentada pela necessidade da obtenção de alguma vantagem seja ela de que natureza for.

Como brasileiro que sou, amo meu país, minha cultura, minha gente e minha história.
Como capoeirista prefiro não me restringir ao simplismo e armadilhas patrióticas que mais se parecem com disputas por protagonismo histórico. Essa preocupação por rótulos e berços que atestem o domínio de uma arte é nociva à própria expansão de qualquer manifestação cultural pois o mundo está descortinando e expondo, para quem deseja ver, que o fanatismo por alguma ideia gera o fundamentalismo dando largas margens ao preconceito, à xenofobia, à perseguição e ao ódio.

Até hoje, confesso, não sei a verdadeira nacionalidade da capoeira e isso já não é preocupação para mim, mas sei que a “cultura da capoeira”, seja ela formada por elementos que forem, apenas busca a unificação, a igualdade (na roda), a alegria da música, o ritmo que envolve, o transe que acontece sem ser de religião, a diferença que ensina e enriquece, a troca, a internacionalização e a quebra das correntes imaginárias que escravizam, até hoje, brancos, pretos, mulatos, amarelos, vermelhos, verdes, cinzas... e por aí vai.

Provocando a discussao - Autor: Umoi Souza

Hoje sentimos a necessidade de um estudo mais pormenorizado de cada opção do vasto leque que a arte capoeira nos oferece.

É inevitável o desmembramento teórico da capoeira quando se tenta entendê-la por completo. Entendimento facilitado pela visão facetada. Porém, acredito que essas facetas da capoeira não são independentes. São, no conjunto, a estrutura que compõe todo o intrigante quebra-cabeças dessa arte-luta-esporte-etc.
Mestre Farol, do Grupo Guerreiros diz o seguinte: “o capoeirista não aprendeu a discutir. O capoeirista precisa ter informação. E só através de curso, trabalhando em cima do aspecto cultural você vai fazer a cabeça do novo capoeirista. Nosso país está se tornando um país muito egoísta. Isso por causa dos problemas das emissoras de televisão, da política que afeta, também, o capoeirista... sobre as várias vertentes na capoeira, cada um diz sobre a sua verdade na capoeira e na realidade, no fundo, se nós unirmos todo mundo, ninguém sabe muito de onde são retiradas determinadas informações que nós seguimos como regra... ...sobre a quantidade de informação que o capoeirista tem, as pessoas estão precisando se abrir mais ou desmembrar a capoeira para o entendimento de cada um: isso é capoeira antiga, isso é capoeira acrobática, isso é capoeira luta, isso é capoeira dança...” trecho da entrevista concedida em Porto Alegre em 1995. Arquivo Grupo União.
Passados mais de dez anos dessa entrevista acredito que pouca coisa tenha mudado na visão do Mestre Farol no tocante à necessidade do entendimento da capoeira e da importância do tratamento da informação que se dá ao novo capoeirista.
A internet está repleta de informações, livros, teses universitárias e até muito material audiovisual está, hoje, à disposição de toda gente.
Assim como é muito importante conseguirmos ver as coisas de outro ângulo também vejo a necessidade de usarmos outros filtros para absolver o que tiver de bom e produtivo nesse oceano de informações sobre capoeira.
Um bom filtro, na minha opinião, é o pensamento crítico. Cuidado com as afirmações na capoeira! Elas são perigosas, ditatoriais e refletem, na maioria dos casos, um autor egocêntrico e ofuscado com seu próprio brilho.
Contudo faço uma observação que considero pertinente ao assunto que é a existência dos Grupos de Capoeira onde eu credito toda a legitimidade para se fazer afirmações, criarem regras, uniformes, graduações, sistemas de conduta, expressões faciais, modelação física, formação de bateria, utilização de instrumentos, etc. desde que: faça tudo isso em nome do seu Grupo e não em nome da capoeira. O que muitas vezes é tentado por órgãos que se apresentam como “organizadores da capoeira”...

Ninguém sabe o bastante que não possa aprender com outro.
Ainda que se possa pensar que seja um contra-senso vejo a necessidade da discussão sistemática e possível entendimento das opções que temos na capoeira afim de que o estudo, como ferramenta da expansão inevitável da arte, seja um dos elementos formativos do futuro bom jogador.
Não proponho apenas o estudo tradicional da sala de aula ou das universidades que, nos últimos anos, têm sido verdadeiras fábricas de teses capoeirísticas de mestrandos e doutorandos acadêmicos. Proponho que cada mestre de capoeira tenha sua formação empírica mas não esquecendo de por em causa o que se possa assimilar a falsas tradições ou costumes inventados que servem a um grupo seleto de pessoas sem efeitos massivos na capoeira.


Assim, seria útil e eficaz o intercâmbio de saberes entre praticantes de capoeira que estivessem mais voltados ou decididos a vivenciar a capoeira nos aspectos:
Marcial, esportivo, folclórico, filosófico, educativo, cultural, etc..

Estes aspectos aparentemente se harmonizam nos conhecimentos do “bom capoeira”. Porém, há que se fazer uma referência àqueles que escolhem apenas um seguimento desses para nortear sua capoeira, sem que haja a “perseguição”. O diferente é apenas diferente e não o errado. E o conhecimento e entendimento do que é diferente é que fomenta a sabedoria.
A federações, confederações, associações devem continuar a desenvolver seus projetos de expansão e de regras sob uma ótica técnica e de interesse dos respectivos federados, confederados, associados. Todavia, não nos esqueçamos de que as rodas de capoeira já foi palco de muita coisa negativa no passado. Nossa arte perseguida e, se não fosse pela resistência dos capoeiras do passado, quase reduzida a pugilato de 5ª categoria e esses organismos deveria ter a séria preocupação de respeitar a decisão de quem NÃO deseja fazer parte dos seus quadros sem que isso o torne num alvo a abater, a perseguir ou ser, mais uma vez, marginalizado.

Fala-se muito em unificação, padronização, uniformização, graduação, formação e assistimos a um grande número, cada vez maior, de estatutos na capoeira: Aluno, treinel, monitor, estagiário, graduado, formado, formando, mestrando, contramestre, mestre, grão-mestre, mestríssimo, professor, instrutor...
Volto a insistir na soberania dos grupos de capoeira que criam suas regras, seus uniformes, cores representativas (como o saudoso Ypiranga de mestre Pastinha), estatutos e exigências na hora de graduar.

Nos grandes eventos, onde muitos e diferentes grupos estão participando, podemos ver reunidos todos esses jogadores com seus respectivos estatutos e/ou cordas. O jogo que se segue, continua sendo o mesmo, com ou sem estatuto. Com ou sem cordas.

Contudo, existe algo abstrato na capoeira que gradua e também premia o capoeirista. Não é um prêmio dado por ninguém. É adquirido na vivência da capoeiragem e por isso mesmo não é raro vermos determinada pessoa ser considerada mestre por muitos sem, no entanto, não portar alguma corda, documento ou marca exterior que a identifique como tal.

É sua forma de estar, seu comportamento assertivo, seu domínio dos instrumentos, sua forma coerente de cantar o que acontece no momento e no ambiente do jogo, sua idade e sua intimidade visível com o espaço da Roda de Capoeira que o qualifica, gradua, reconhece.

Meu Nascimento na Capoeira

O ano era de 1974. Eu estudava no Centro Educacional 04 de Sobradinho (cidade satélite de Brasília) ou, simplesmente, “Centro 04”.
Na minha turma de aula, o meu melhor amigo era o Clécio Oliveira do Carmo. Me lembro, também, que na minha turma tinha o Geraldo, Pedro Berto e outros que já não me recordo o nome.
O Clécio, que sentava invariavelmente ao meu lado, me falou um dia que estava praticando capoeira, ali mesmo no Centro 04. Era grande seu entusiasmo ao falar daquela atividade e sem nem mesmo saber ao certo do que se tratava eu perguntei: tem vaga para mais um nesse negócio? O Clécio disse que sim, que me levaria para ver uma aula. Mas nesse mesmo dia me levou em sua casa para me mostrar alguns movimentos que já estava aprendendo. Me mostrou dois movimentos: Suicida e Aú agulha. Lembro que ele riu muito quando eu tentei fazer esses movimentos que, obviamente, saíram todos mal feitos, tortos e hilários, provocando em nós dois muitos risos... Bom, com risos e cenas cômicas eu dava, dessa forma, meu primeiro passo para conhecer a capoeira que se tornaria a linguagem que ,através da qual, eu passaria a escrever a história da minha vida.

Marcamos para a outra semana a minha primeira aula no grupo de capoeira do Centro 04.
Quando cheguei me lembro que a sala estava cheia. A turma era composta, na grande maioria, por jovens estudantes daquela escola com idades compreendidas entre os 10 e 13 anos. Talvez um ou outro com 15 anos. Eu tinha 10.
Vestiam calções, malhas, pijamas, calças azul marinho (parte do uniforme do Centro 04 que era composto por calça azul marinho e camisa branca) e, por regra, ninguém usava calçados ou alguma camisa. E fiz minha primeira aula de calça jeans, sem camisa e sem calçados.

Nesse dia, quem estava dando aulas era um magrelo alto e branco de nome Marcos. Seu corpo parecia de borracha e era, aparentemente, o mais velho. Não sei bem a origem capoerística do Marcos mas na semana que antecedeu eu conhecer a pessoa que se tornaria meu mestre foi o Marcos quem deu aulas.

Dois dias eu treinei com o Marcos até que o Mestre Cordeiro (meu primeiro, mas não único mestre) apareceu para assumir as aulas.

Era muito sério e não falava muito. Falava o bastante para entendermos suas regras e forma de trabalhar. Era uma disciplina meio militar. Talvez fomentada pelo fato de ele ter sido, ou ainda era, nessa época, militar.
De qualquer forma tínhamos um código de conduta muito rígido baseado em silêncio nas aulas, respeito ao mestre e aos colegas, higiene, assiduidade, participação nas aulas, atenção e crescimento.

Tudo aquilo representava para nós uma aliança muito forte e que facultava a cada um o sentimento de cumplicidade própria dos grupos de pessoas que comungam dos mesmos objetivos. Fazia com que nos sentíssemos parte de algo importante. Éramos “a turma da capoeira. Orgulhosos por pertencer ao grupo de capoeira do Centro 04 e durante o intervalo das aulas (o recreio) não falávamos de outra coisa a não ser da capoeira e do mestre Cordeiro. Foi como uma febre coletiva. Uma paixão arrebatadora como amor à primeira vista. Meu pai (Ênio Souza) muito sábio, ao ver o meu “fanatismo religioso” pela capoeira me fez prometer que primeiro viria meus estudos e depois a capoeira. “Meu filho sou baiano e o que você está praticando é da minha terra. Mas entenda que sem estudo você não chega em lugar algum. Se quer realmente jogar sua capoeira apenas por amor, estude e tenha uma profissão para nunca precisar sobreviver da capoeira”. Essa conversa calou fundo na minha alma como essas profecias que lemos e sentimos algum arrepio. Meu pai falou isso para mim quando eu tinha 10 anos e hoje com 45 ainda sinto o peso do conselho e, ao mesmo tempo, alívio por o ter seguido e um lamento pelos que optaram pelo outro lado porque, infelizmente, são bem poucos os que podem, felizmente, ter uma boa vida e independência financeira conciliando ao mesmo tempo o amor à capoeira com a profissão, também de capoeira.

Amo a capoeira tal e qual em 1974 e, felizmente, tenho meu diploma e minha profissão. Obrigado meus pais. Onde quer que estejam, do fundo do meu coração, obrigado...

Durante suas aulas o mestre Cordeiro mantinha a disciplina com martelo nas costas para quem conversasse durante a aula ou pagando apoios de braço (nunca menos de vinte) como forma de castigo. Aceitávamos e tentávamos não “vacilar” com o mestre. Também devo dizer que o mestre, com essa coisa do martelo nas costas, nunca magoou ninguém seriamente. Era um castigo de caráter mais psicológico do que físico. Mais humilhante para quem recebesse o martelo do que doloroso. Pois a vergonha de ser exposto no meio da roda, com os braços abertos e receber um martelo nas costas era o que fazia esse aluno se esforçar muito mais para não acontecer outra vez. Um dos meus martelos, eu lembro, foi numa ocasião em que tive que passar duas semanas sem poder aparecer nas aulas. Cheguei perto do mestre e lhe disse que estava “uns dias fora”. Ele apenas me disse: “Então vai ganhar um martelo para ficar dentro”. Não me doeu nada aquele martelo, mas o riso da turma foi mais forte. E durante muito dias ainda ouvia uma ou outra ironia fazendo alusão ao martelo para eu ficar dentro...

Dos meus companheiros de turma da capoeira eu posso, ainda, me lembrar de alguns nomes: Clécio, Geraldo (Bencinha), Marcos (Espinhela e/ou Borracha), Bené (Mamaema), Pedro Berto (que era, na minha opinião o melhor da turma. Eu invejava muito ele. E nunca disse isso até agora. Fica o registro, Pedro Berto: Eu te invejava muito e tentava ser tão bom quanto você. Ah, e tinha um medo danado de você me dar um sufoco na roda... o cara era muito bom!!! Deus te abençoa onde quer que esteja agora.), Dedinho, Afonso, Japão, José Ferreira (em memória) entre tantos...

Em 1974 as informações sobre capoeira e material didático eram extremamente escassos. Haviam pouquíssimas coisas que tínhamos acesso e o que encontrávamos era referências sobre a capoeira em algum livro sobre folclore brasileiro e que catalogava a capoeira como um dos elementos do nosso folclore ao lado de lendas do Saci-Pererê, Caipora, Iara, Curupira, etc.

As aulas do nosso mestre Cordeiro eram complementadas pelas aulas esporádicas do mestre Mão de Ouro que nos dava formação de Capoeira Angola. Não a Angola que conheço hoje com essa linhagem de mestre Pastinha, indumentária e código comportamental. Era a Capoeira Angola do mestre Mão de Ouro. Ele usava graduação, não usava calçados em suas aulas, o uniforme era branco mas sua capoeira, seu trabalho era de capoeira de angola, como ele mesmo afirmava. Não posso agora fazer algum tipo de comparação sobre a capoeira do meu mestre e a capoeira do mestre Mão de Ouro, apenas posso afirmar que eram duas formas distintas de ensinar e ritualizar.

O Mestre Mão de Ouro tinha uma mística muito forte no seu trabalho. Nós gostávamos muito do nosso mestre. Mas os alunos do mestre Mão de Ouro, simplesmente, o idolatravam. Era como um régulo de uma tribo. Sua imagem transmitia força, respeito, medo e sua vida era, também, capoeiragem. Havia uma espécie de cumplicidade amiga entre esses dois mestres. Às sextas-feiras, dia de Roda, o mestre Mão de Ouro trazia seus “meninos”.. Caramba... que turma boa!.. não havia um aluno dele que não soubesse jogar muito bem, tocar os instrumentos e demonstrar aquela adoração pelo seu mestre.

Lembro que quando o mestre Mão de Ouro saia da roda para descansar, um aluno dele pegava numa capa de LP e abanava para fazer um vento refrescante para o mestre. Não entendíamos aquilo, mas acontecia, simplesmente com muita naturalidade.

Da turma de alunos do mestre Mão de Ouro eu tenho que fazer referência a um especial: o Diabo Louro. Cria do mestre, aluno dedicado e contramestre da Escola de Capoeira Angola do Mestre Mão de Ouro. Um verdadeiro discípulo...quero te dizer, Diabo Louro, que você foi e continua a ser uma das minhas referências na capoeira e ainda outros que ainda recordo o nome: Bodinha, Gerson, Gilson e Pombo...Obrigado a vocês pela inspiração.
“saudade grande, que vem lá dentro do peito, não sei explicar direito por que vem do coração”...

Ao Mestre Com Carinho - Uma homenagem ao Mestre Ousado.

“Ao mestre, com carinho...”

É sempre difícil manter a imparcialidade quando falamos de pessoas amigas. No caso do meu amigo mestre Ousado, se torna mais difícil, pois alem da amizade, tenho grande admiração. Mas tentarei ser, efetivamente, imparcial ao dedicar minhas palavras e recordações desse ícone da capoeira chamado mestre Ousado.
Bom, meu nome é Umoi Melo de Souza, sou de Brasília e sou um capoeira. É muito comum ouvirmos os nomes de capoeiras com certa expressão no nosso meio.
Já muito antes de deixar Brasília para me aventurar pelo velho mundo eu já ouvia falar da figura de um tal Mestre Ousado.
Nos bate-papos de fins de rodas, de eventos os assuntos são quase todos sobre capoeira e sobre capoeiristas.
Num desses bate-papos em Brasília eu ouvi falar do meu amigo. Do grande capoeira que era e de como estava fazendo inglês gingar ao som de berimbau.
Foi um camarada que morava na Alemanha que de passagem por Brasília nos falou um pouco da capoeira na Europa e entre os nomes citados por ele ouvi, pela primeira vez, o nome mestre Ousado.
Em 1990 cheguei em Portugal como mais um capoeira que deixou pra trás sua terra e se aventurou pelas voltas do mundo.
Mais uma vez, em contato com a capoeiragem européia ouvi o nome Mestre Ousado e me perguntava o porque desse apelido Ousado.
Em 1993 tive a oportunidade de participar de um evento de capoeira na cidade de Londres e um a um os convidados iam sendo apresentados e de repente foi anunciado: from London, Master Ousado.
Lá estava eu, finalmente, numa roda de capoeira, em Londres com o famoso Ousado. Vi aquele tipo moreno, estatura media e robusto como um touro agradecer as palmas e cumprimentar os outros convidados. Ao me cumprimentar se pos ao meu lado e pude, a partir desse momento, iniciar uma amizade que dura até o momento em que escrevo essas palavras.
Me fascinei com seu jogo duro, porem educado. Reparei no símbolo do seu uniforme impecavelmente branco - Argola de Ouro.
Não sei bem porque, mas tivemos uma empatia desde o inicio e, infelizmente, nessa roda mestre Ousado sofre um acidente, deslocando a mão esquerda (se não estou enganado). E devido o estado que ficou sua mão, quiseram o levar para o hospital carregado. Mestre Ousado se recusou ser carregado dizendo: Não precisa me carregar, eu vou andando. Nesse momento, segurando sua mão com a outra, se levantou, olhou para o público e saiu da roda caminhando, cabeça erguida e sob um forte aplauso da platéia e ainda, acenando com a cabeça, agradeceu as palmas e com sorriso no rosto, segurando a dor que sentia.
Desde esse ano passei a convidá-lo para meus eventos e encontros de capoeira em Portugal, aos quais, mestre Ousado sempre marcou presença, nunca me impondo condições especiais por ser um mestre. Veio sempre nos ajudar e dividir com todos nós seus conhecimentos de capoeira experiente, de mestre rodado e conhecedor.
Passei a representar Portugal nos seus eventos em Londres.
Dono de uma grande humildade eu nunca assisti o mestre Ousado tecer algum comentário depreciativo de outro capoeira, ainda que pudesse ter opiniões diferenciadas de um ou de outro. Sempre o vi respeitando o estatuto de cada capoeira, respeitando as condições de jogo e respondendo, de forma educada, às perguntas que lhe foram feitas durante os jogos que tive a oportunidade de vê-lo jogar. Lento, rápido, de dentro, de fora ou mais presente, mestre Ousado não esconde sua mestria e sabe jogar conforme o parceiro e mantendo sempre seu autocontrole.
É mestre que da lição e o titulo de mestre lhe encaixa bem, pois sabe usá-lo sem negligência e arrogância dos que se julgam sabedores de tudo.
Como mestre que ensina, se torna pai responsável que cuida dos filhos ainda que estes, nem sempre levam em consideração o pai que tem na capoeira. Não guarda mágoa. Deseja o bem para quem, direta ou indiretamente, lhe causa algum mal.
Certa vez, num encontro numa cidade da Espanha, vi um mestre mais novo achar o mestre Ousado numa tesoura, conseguindo tirar, por alguns segundos o equilíbrio do mestre. Eu que estava na bateria comentei com uma aluna minha que tocava pandeiro ao meu lado: veja o que vai acontecer agora. Praticamente dois segundos depois que eu falei isso o jovem mestre perdeu o chão debaixo dos seu pés e quando sentiu o chão outra vez foi com o corpo todo. Estava dada a resposta a uma pergunta feita de forma mal educada. Assim o mestre educa. E assim o jovem aprendeu que roupa de adulto não serve em menino.
São muitas rodas, muitos momentos e muitas conversas.
Muito momento em que estive apenas ouvindo suas histórias e passagens pelo mundo da capoeiragem. São momentos que ficaram gravados na minha memória e que guardo com carinho.
Falei ao mestre Ousado de um grande capoeira que conheci em 1979, cujo apelido era Besouro e qual não foi minha surpresa: Era grande amigo do mestre Ousado e dividiu comigo muitas passagens da sua vida que teve ao lado desse grande capoeira. Falei-lhe de alguns vultos da capoeira de São Paulo e mais uma vez o mestre me contou momentos e casos seus vividos com a capoeiragem paulista. Evocando sempre com muito respeito a imagem do seu mestre.
Hoje meu amigo caminha para os 60 anos de vida, dos quais, a maior parte bem vivida e dedicada à capoeira.
Na Europa, América do Norte, Ásia, não importa. Mestre Ousado é único e especial e que sorte tem o capoeira que pode, como eu, incluir no seu currículo de capoeira uma amizade tão rica, valiosa e sábia como a do nosso querido amigo Ousado, o Xerife de Portugal.
Deus te abençoe amigo, onde quer que esteja e como um capoeira que sou, te agradeço o enriquecimento da nossa arte que nos anima sempre a seguir em frente. Sua estrela há de continuar brilhando... sempre.
Seu amigo,
Umoi.

Parede, 16 de Junho de 2009

domingo, 18 de outubro de 2009

Patua' - um conto capoeiristico - Por L.S.

PATUÁ
L.S.

O dia estava chegando ao fim quando Simão, ao longo de uma jornada de 64 dias, chegou a uma pequena cidade que, segundo ele acreditava, era o local onde iria encontrar seu desafio pessoal pondo fim a uma luta interna (e quase eterna) que existia na sua alma. Luta essa que teve início na sua infância, quando presenciou grande humilhação sofrida pelo seu pai.
Era evidente sua fadiga, seu cansaço. A barba por fazer e a pele ressequida pelos longos dias de caminhada ao sol faziam-no parecer mais velho apesar de ter apenas 23 anos. A sandália de couro deixava bem claro que o caminho tinha sido duro. A sola gasta denunciava muitos quilômetros percorridos.
Vasculhou a algibeira e, dentro, encontrou o bastante para uma noite na pensão Marisol. Pensou que talvez o nome tivesse sido dado por ser perto do mar e com tão intensa luz solar durante todo ano.
Recebeu a chave nº 32 e entrou no que podia, naquele momento, ser chamado de quarto.
Pousou a velha mochila em um canto, tirou suas sandálias que mais pareciam com algo fundido aos pés, pôs de lado o velho gunga. Pensou em se atirar naquela velha cama, mas conseguiu encontrar o caminho de um banho primeiro. A água fria o fez lembrar dos dias que encontrava Santa Bárbara na estrada. O céu clareava a cada relâmpago e cada trovoada lhe dava a certeza de estar no caminho certo. Lembrou com tristeza do pequeno cão morrendo na estrada, vítima de um atropelamento. O pobre animal, debaixo de forte chuva, estava com metade do corpo esmagado e a morte era iminente. Simão pensou que o melhor era acabar com o sofrimento do animal e imaginou a melhor forma de dar-lhe paz. Pousou a cabeça do bichinho nas mãos e pensou numa torção rápida e indolor no pescoço. O animalzinho mirou fixamente os olhos de Simão como que dissesse:
- Por favor, fique comigo. Não me demoro em partir. Mas pelo menos uma vez na minha vida gostaria de sentir proteção.
Simão entendeu intuitivamente as “palavras” do cãozinho e não conseguiu conter as lágrimas. Sem perceber, acariciava a cabeça do pobre animal que, já sossegado, dava o último suspiro. Morreu nas mãos de Simão que, naquele momento, representou, para o cão, um anjo divino que está ao lado de quem se prepara para a grande viagem.
Estranha forma na qual Deus se manifesta para as criaturas. Pensou...
Sentado no chão, a água ainda caindo sobre seu corpo cansado, levantou-se e se atirou na cama, caindo em profundo sono, ansioso pelo outro dia...
- Moço! Tá na hora de acordar! Moço!


- Moço! Tá na hora de acordar. Cê tá inda aí?
- Eu tô aqui moça. Só tô me levantando agora. Daqui a pouco eu saio e falo com tu.
O dia tinha clareado e Simão, perdido no seu merecido sono, tinha passado da hora de sair do quarto.
- To aqui moça. Quê que é?!
- - Oxente! Quero saber se tu queres continuar na pensão ou não. Se quiser tem que pagar adiantado.
- Se arrete não viu! Tô saindo agora deixa só eu pegar minhas coisas.
- Tá bom...
Simão andava pelas ruas daquela cidade com as forças renovadas pelo sono e pelo café da manhã servido pela “moça” da pensão. Pensou, com coerência, que o melhor seria conseguir algum tipo de trabalho para, mais à vontade, dar continuidade à sua busca.
Ia descendo uma ladeira de nome “Morro da Conceição” e antes mesmo que chegasse ao fim já começava a ouvir o compasso ritmado de uma bateria angoleira bem afinada. Foi se juntando à multidão que se espremia para conseguir olhar para o centro de uma roda formada por homens de feições rudes, roupas esfarrapadas e dentes estragados. A música era repetitiva e falava algo sobre São Bento proteger o jogo de alguém.
Simão afastou-se da multidão e ainda ficou por alguns instantes “viajando” na melodia. Cantava, em pensamento, o refrão: São Bento proteja esse jogo. São Bento me deixa jogar...
- Proteja-me meu São Bento. Disse entre dentes como se temesse que alguém mais, além dele mesmo, ouvisse suas palavras.
Sem olhar para trás, Simão foi se afastando da multidão e, de longe, ainda ouviu um último refrão que dizia: quem é você que acaba de chegar?
Parou por uns instantes e ainda, sem olhar para trás, disse mais uma vez só para si: - Tudo na hora, Simão!
Seguiu caminho percorrendo ruas, esquinas, becos e praças. Foi até à praia conhecida por Sereia Triste e ficou sabendo que a praia tinha esse nome por causa de uma velha lenda local. Dizia-se que, há tempo, uma sereia havia se apaixonado por um pescador que também a amava. O amor entre eles era impossível, pois o pescador não podia viver no mar e a sereia não podia viver fora dele. Apenas uma vez por mês, quando a lua estava cheia, eles tinham o encanto sagrado de se unirem por alguns minutos.
Em certa noite de lua cheia, o pescador não apareceu e a sereia, chorando pelo seu amor impossível, se revoltou contra a deusa do mar que lhe lançou a maldição de viver sem morrer, sem poder, desta forma, se encontrar com seu pescador no paraíso.
Diz a lenda que até hoje, em noites de lua cheia, ainda se pode ouvir o profundo lamento da sereia, chorando pelo seu pescador, misturado com o barulho da maré, enquanto que, o pescador no paraíso, espera o fim da maldição.
Olhou para o céu e viu que não demoraria para que a lua ficasse cheia e pensou que talvez pudesse vir até à praia e tentar ouvir o seu canto.
O dia estava chegando ao fim e Simão teve a certeza de que naquele dia não conseguiria trabalho ou local para ficar. Voltou à praia e antes que a noite jogasse seu véu negro sobre a cidade, olhou fixamente para o sol que se escondia, tímido, por trás da linha do mar.
Dormiu tranquilo embalado pelo som das ondas.
As areias da praia ofereciam a Simão o calor roubado do sol durante o dia e Simão, alheio a outras criaturas que disputavam um luar na areia viajou, em sonho, à sua infância...
- Simão corre que já vai começar.
- Já tô indo. Se arrete não que chegamos a tempo.
- É, mas se a gente chega atrasado o mestre fica virado no diabo e aí já sabe como é, né? Afinal ele é seu pai. É sexta-feira e a roda de hoje vai ter visita. Ouvi dizer que os meninos de mestre Damião vão pra lá. Aí sabe como é, né? O mestre gosta que todo mundo esteja lá na hora.
- Meninos de mestre Damião?! Hum! Quero ver se aquele tal de Bodinha vem outra vez. Quero descontar o tapa que ganhei na outra roda.
- Oh, Simão, num vai criar caso outra vez. Ainda mais que hoje os meninos vêm com um tal de Diabo Louro, o mais antigo aluno de mestre Damião.
- Pois vou lhe dizer uma coisa! Com diabo louro ou moreno, hoje o Bodinha não me escapa.
- Acho que além de apanhar de visita, cê tá querendo apanhar do mestre também. Cê que sabe. Simbora...
Acordou com os primeiros raios de sol e achou que um banho de mar iria fazer bem para o dia que estava começando.
Certificou-se de que ninguém estava na praia, se despiu e se uniu às águas.
Simão soltava o corpo que era levado para frente e para trás no vai-e-vem da maré. Mergulhava até onde conseguia e se largava no meio da imensidão azul e transparente. Parecia senhor dos mares. Sua cabeleira comprida lhe dava um ar imponente naquele cenário subaquático. Nadou em direção à praia e agora, em águas mais rasas, mergulhou e encontrou uma concha branca que se destacava das demais. Simão pegou-a e saiu da água para, rapidamente, se vestir. Antes mesmo de abandonar a praia, lançou um olhar profundo para o horizonte e instintivamente apertava as mãos, tendo em uma delas a conchinha branca.
Voltou à Pensão Marisol e foi falar com a moça do registro.
- Vai querer o 32 outra vez?
- Num vai dar não, moça, mas tô querendo que a senhora me fale se sabe de alguma coisa que posso fazer para poder comer e dormir como gente.
- Quê que você sabe fazer?
- Oxente! Numa hora dessas a gente faz de tudo um pouco. Mas toda minha vida, desde que me entendo por gente, eu vivi na capoeiragem ensinada por mestre Euclides, meu pai.
- Mas isso é coisa de vadio. Ali mesmo, no fundo da ladeira da Conceição fica a cambada de Irineu, um mulatão forte e bom de briga. Sempre tem uma multidão dando pernadas, insultando as pessoas com músicas indecentes e pedindo dinheiro. É isso que você faz?
- Olhe Dona, num conheço o pessoal da ladeira, mas o que eu aprendi até hoje vem sendo passado dentro da nossa família há muito, muito tempo. Meu avô contava histórias de seus avós vindos de longe e de como eles enganavam seus donos. Nossa tradição é presa à nossa história e tudo que posso dizer é que com o ensinamento que tive aprendi o respeito pelo mais velho, o valor à vida e o apreço à liberdade. Sou vadio não, viu Dona. Com licença... Foi saindo.
- Oh Simão, volta aqui. Desculpa-me, viu! Mas é que eu cresci vendo essa tal de capoeira nas ruas e nunca imaginei que alguém pudesse tirar essas coisas que você falou dessa baderneira feita na Conceição. Se arrete não viu? Num quis ofender. Olha, tô precisando de uma boa limpeza nesta velha pensão. Temos portas para consertar, vidros para trocar e canos para emendar. Se você aceitar, pode ficar com o 32 que você conhece, come aqui com a gente e, se puder, te dou uns trocados. Que tal?
- Deus abençoe! Quero sim.
A “moça” da pensão era, na verdade, uma senhora de cinqüenta anos. Tinha herdado aquela pensão da sua mãe e conta-se que era a melhor da cidade, pois era a única. Com a exploração do turismo, os hotéis maiores chegaram e a velha Marisol ficou numa categoria bem abaixo sem poder competir de forma igual com seus rivais de mercado. Servia, principalmente, a andarilhos, trabalhadores do cais e, nos finais de semana, aos jovens casais, mais apaixonados, à procura de uma noite privada.
Quase um mês se passou e Simão, a serviço da dona da pensão, trabalhava de sol a sol. Ajeitava torneiras que estavam pingando, tapava buracos nas paredes, improvisava taramelas onde já não se podia usar uma fechadura, martelava o velho corrimão, carcomido pelo tempo, e todos os dias, antes de o sol se pôr, ia para a Praia da Sereia mirar o horizonte. Neste momento acariciava seu patuá preso ao pescoço e falava consigo mesmo: está perto, eu sei. Mas quando será?
Estava voltando de mais uma visita à praia e resolveu tomar outro caminho de volta para a pensão. Foi por uma rua de nome Pai João e se impressionou com um ritmo que vinha de uma das casas. Precisamente a nº 46. O som era de tambores e as músicas cantadas difíceis de entender, pois Simão nunca tinha ouvido aquela língua. Resolveu seguir caminho quando ouviu nas suas costas:
- Não quer entrar? Simão olhou para trás e viu que uma jovem de cabelos compridos e negros, rosto bonito, saia branca e pés descalços sorria para ele, ao mesmo tempo em que repetia a pergunta. – não quer entrar?
- Não quero incomodar menina, só estou de passagem.
- Não vai incomodar nada. Hoje é dia de festa e todos são bem-vindos.
- Mas é festa de quê?
- De Iansã. Vem! Entra e participa com a gente.
- Oxente! Acho que um bocado de distração não vai fazer mal. Afinal já trabalhei hoje. Como é seu nome?
- Eu me chamo Carmen. E o seu?
- Eu sou o Simão.
- Então vem, Simão...
A simpática Carmen acompanhou Simão por algumas bananeiras. Simão sentiu o cheiro característico de chiqueiro e logo percebeu que ali se criavam porcos. Algumas galinhas estavam soltas, mas já à procura de um poleiro, pois o dia estava chegando ao fim. Chegaram no fim do lote onde estava uma pequena multidão em círculo, o que fez Simão se lembrar da Roda da Conceição, mas desta vez sem os tradicionais arcos musicais a tocarem seus ritmos de São Bento Grande ou Angola.
Havia pessoas com roupas brancas, panos brancos em volta de suas cabeças e outros que se ocupavam de manter o ritmo aceso através de seus tambores e sons mágicos.
Simão entendia todo o misticismo que envolvia o semblante das pessoas, embora não se perturbasse com toda a cena. Reparou que uma das pessoas da roda era um rapazinho de pouco mais de 12 anos que empunhava uma espécie de machado de cabo curto. Tinha uma das mãos para trás do corpo e a outra mostrando alto o machado. Soltava de vez em quando um grito sem, portanto, abrir os olhos. Era um grito longo...
Outros apenas dançavam em grupo, formando, por vezes, filas que andavam para frente e para trás. Reparou que Carmen havia se juntado à dança e agora, com sua longa cabeleira à frente do rosto, não mais se via sua face e sim a forma hipnótica como dançava fazendo parte do próprio som dos tambores.
No meio da cerimônia, uma senhora gorda e com roupas folgadas e coloridas se fazia acompanhar de outra que ficava sempre ao seu lado. A mulher não abria os olhos e, com estranha agilidade para alguém com aquele físico, rodopiava, saltava e, por vezes, ria com incrível deboche de sabe-se-lá-de-quem. Por mais que não se impressionasse com todo o cenário, Simão começou a se incomodar quando a mulher gorda, de repente, começou a andar em sua direção. Parou a pouca distância e começou a dançar em sua frente, como se fizesse uma espécie de homenagem. Simão não entendia nada, mas ao mesmo assim aceitou a dança com respeito. Parou subitamente de dançar, chegou mais perto e deu um forte abraço em Simão ao mesmo tempo em que, também, dava debochada gargalhada. Simão sentiu o corpo tremer e se arrepiar. Neste momento os tambores calaram. A mulher soltou Simão, entregou-lhe uma pena – certamente de uma galinha sacrificada para a festa – e pediu que a acompanhasse. Simão procurou com os olhos por Carmen e esta, entendendo a confusão do jovem, acenou com a cabeça que sim, franzindo a testa.
A mulher andando na frente e de mãos dadas com Simão foi levando-o para dentro da casa.
Agora, num quarto aconchegante, mas meio estranho devido às imagens de santos e velas coloridas, Simão recebeu instruções para que se sentasse no pequeno banquinho de madeira que estava num dos cantos do quarto. A mulher gorda disse: - espere aqui meu filho, eu não demoro.
De fato não demorou e voltou com outra roupa. Sentou-se à frente de Simão e pediu pra que lhe desse as mãos.
A mulher gorda, agora falava como uma anciã de oitenta anos. Acendeu um velho cachimbo e entre uma fumaçada e outra foi olhando para as mãos de Simão e começou a falar:
- Se preocupe não “fii”, sunsê tem coração bom. Tá com o espírito desassossegado por causa do seu caminho. Mas a vó tá aqui pra te falar. Sunsê num pode desviar seus pensamentos pros lados da maldade. O desassossego da sua cabeça é a luta entre o bem e o mal. Vige fii!! Sunsê na hora da decisão vai ter que escolher. Vai ter que enfrentar de frente a coisa ruim que tá do seu lado e que todo mundo tem. A vó vai te fazer uma reza pra meu fii ter a mente alva na hora da escolha.
Simão mirava fundo os olhos enevoados da velha que ficava ainda mais velha por causa da pouca luz e das baforadas de cachimbo que lhe faziam uma espécie de máscara.
A velha começou a falar rápido, uma espécie de língua primitiva, ao mesmo tempo em que uma das mãos fazia sinais mágicos, por cima da cabeça de Simão.
Este, atento ao que se passava, respeitava o cerimonial pedindo, em consciência, perdão a Deus, se naquele momento ele estivesse pecando contra a sua fé.
- Pode ir, fii. A vó já benzeu e agora segue seu caminho.
Simão se levantou e a velha continuou sentada apreciando seu cachimbo, perdida em pensamentos e sem olhar para ele. Antes mesmo que Simão saísse totalmente da casa, ainda ouviu a velha dar uma boa risada, mas bem diferente da que ouviu quando foi abraçado pela gorda. Desta vez, uma risada sem abrir a boca.
Na saída, Carmen o esperava e com grande entusiasmo e brilho nos olhos perguntou a Simão se ele havia falado com a “Vó”. Ele acenou com a cabeça que sim e disse que já era tarde e tinha que ir embora.
- Fica mais um pouco, Simão. Vamos jantar.
- É? E o que vamos comer?
- Galinha...
Três dias se passaram e Simão não esquecia as palavras da vó que dizia que ele não podia desviar os pensamentos para os lados da maldade e que tinha de enfrentar a coisa ruim que está do seu lado. Ele percebia agora a luta interna pela posse da sua alma disputada entre o bem e o mal.
Lembrou o dia da sua partida:
- Pai eu preciso ir. Tenho que seguir meu caminho, pois não estou mais me sentindo verdadeiro aqui. Preciso entregar meu corpo em outras capoeiragens. Sentir o arrepio causado por um viola desconhecido e entender uma chula num momento de decisão. Simão chorava, nesse momento, sentindo um misto de medo do desconhecido e certeza da decisão.
Com um ar grave e seguro, o velho Euclídes assim falou:
- Filho, sinto que tudo que eu disser não vai mudar o que já está decidido na sua cabeça. O mundo não é igual a sua casa. Os homens são maus, mesquinhos e pequenos. Você encontrará pedras e espinhos na sua estrada, mas eles serão como testes que se reprovados terão a decisão de um novo caminho. Se mantiver certo e firme, eles te tornarão mais forte, pois não poderão te destruir. Mas lembre que a sua batalha só a você pertence e, na hora de enfrentar a coisa é você que estará diante dela para ganhar ou perder. O caminho de volta você conhece, nossa roda está sempre aberta e minha fé está contigo. Tirou um búzio como pingente e colocou em volta do pescoço de Simão.
- Parte agora! Não olhe para trás. Tenha a certeza de que onde eu estiver estarei rezando por você.
- Axé, meu pai... Eu volto e trago algo comigo. É meu destino...
No interior do velho 32, Simão pegou no seu gunga, apertou sua corda, dando-lhe uma maior envergadura e introduziu a cabaça. Colocou o caxixi na mão, preparou a longa vareta e o pesado dobrão. Começou a tocar...
Tocava baixinho e com grande maestria os toques mais tradicionais e que havia aprendido com o pai e mestre. São Bento Grande, Angola, Santa Maria ou Idalina. Em tempos, ouvira dizer que quando se toca com a alma, velhos mestres, em espírito, aparecem para homenagear o tocador.
No meio do quarto iluminado por uma lamparina, sentado num velho tamborete de madeira, Simão, como que em transe, continuava a evoluir em seu berimbau, desejando que naquele momento, ele pudesse estar sendo homenageado pela presença de seu Pastinha, seu Bimba, Sinhozinho, Chibata, e tantos outros para quem ele tocava. Terminou sua oração executando um toque triste, quase um lamento e decidiu que era a hora de conhecer mais de perto o agito da Conceição.
Alisou o búzio pendurado no pescoço e foi descendo as escadas da Marisol com destino à ladeira.
- Olá, Simão. Lembra de mim?
- Oxente! Claro que me lembro. É... Carmen, né?
- Isso! Ela sorriu contente.
Carmen estava esperando Simão do lado de fora e esse, se mostrando surpreso e contente perguntou o que ela estava fazendo ali.
- No outro dia, quando você falou com a Vó, eu fiquei vendo o caminho que você seguia de volta e vi que você devia estar morando aqui por estas bandas. Não foi difícil descobrir que você morava aqui na Marisol, pois todo mundo aqui parece que te conhece ou já te pediu algum favor. Então, decidi te chamar pra passear um pouco. Que tal?
- Olhe menina...
- Menina, não! Interrompeu, um pouco séria. É Carmen. Falou com doçura.
- Tá bom, Carmen. Eu estava indo a outro lugar e não acho que é um lugar bom pra te levar.
- E onde é?
- Vou à Conceição. Você conhece?
- Oh, Simão, quem não conhece a turma da Conceição? Todo mundo sabe quem é Irineu. Principalmente eu.
- Oxente! Por quê principalmente você?
- Ora, ele é meu pai...
- Como? Quê que você disse??? Seu pai???
- Sim, meu pai, meu pai. Oxente! Coisa estranha... Qual é o teu assombro, homem?
- Nada! É que... Deixa pra lá. Se quiser mesmo dar uma volta, vamos. Deixa só eu guardar minhas coisas no quarto.
Simão subiu a velha escada de madeira da Marisol com o coração disparado por causa da surpresa misturada com raiva e carinho pela bela Carmen. Entrou no quarto com brutalidade. Jogou suas coisas ao chão. E tirou, cuidadosamente, da cintura uma afiada navalha. Olhou-a fixamente por alguns segundos e atirou-a para um canto do quarto.
- Droga!!
Desceu ao encontro de Carmen sem esconder seu ar carrancudo.
- Quê que te deu, Simão? Tá bravo por eu ter vindo aqui?
- Bobagem, men... Carmen! Eu gosto de te ver aqui, mas tenho o espírito desassossegado e enquanto não... Interrompeu o que ia dizer e Carmen achou melhor não perguntar o resto, pois notara que Simão, ao dizer as últimas palavras, estava com dentes meio cerrados...
A noite estava quente e agradável. E os dois foram caminhando sem destino e sem rumo. Carmen falava a Simão coisas sobre as profecias da vó e do dia-a-dia no Terreiro. Simão lhe falava sobre sua família, como era seu pai, o “mestre” e sua vida educada na disciplina das rodas de capoeira.
Quando Simão tocou no assunto, Carmen parou, olhou para Simão e perguntou se ele estava indo ao encontro de Irineu, na Conceição. Simão disse que era melhor não falar no assunto.
Resolveram ir até à praia da Sereia Triste, pois era noite de lua cheia e o clima, já romântico, propiciava o passeio.
- Vamos cortar por aqui. Disse Simão.
- Não acho boa ideia, Simão. Essa rua é de “luz vermelha” e não quero ser confundida com uma...
- Uma o quê, Carmen?
- Ora, Simão, você sabe.
- Não, não sei.
Carmen se irritou e disse bem claro: - com uma puta! Entende agora?
Simão sorriu, pela primeira vez desde que começaram a andar, e Carmen, sem saber porque ele estava rindo, começou a sorrir também.
- Olha, Carmen, a gente faz assim: passamos de mãos dadas. Aí ninguém vai pensar que você é uma... Você sabe o quê.
- Tá bom!
Foram andando sem pressa e como um casal de namorados. Na verdade faziam um casal bonito. Carmen ia de cabeça baixa, não querendo olhar para o interior dos vários botecos que existiam ao longo da rua.
Pelas velhas calçadas esburacadas, várias mulheres andavam de um lado para o outro, parando os homens que passavam por ali, oferecendo, a eles, os seus “serviços”.
Já iam no meio da extensa rua, quando foram abordados por um mulato muito alto e forte. Tinha vários fios de ouro no pescoço, muitos anéis e até mesmo um dente de ouro o homem tinha.
- Boa noite, camarada! Como é que é? Vai levar essa cabrita pra dar um passeio? Fora da rua é mais caro...
Simão não entendeu nada e com segurança nas palavras e, principalmente no olhar, disse:
- Olha, “camarada”, tô de passagem com minha companheira e não tô entendendo essa conversa de “cabrita” ou “mais caro”. Você deve tá nos confundindo com outras pessoas. Boa noite. Foi se retirando com Carmen e o mulatão se pôs na frente com um cínico sorriso, o que permitiu mostrar com mais clareza seu dente de ouro.
- Eita! O homem é “brabo”, rapaz. Meu pai... Você não sabe que essa rua é “minha”? E para “pegar” mulher aqui tem que pagar? Ao falar isso retirou do bolso de trás das calças uma navalha de barbeiro e seu brilho aguçou os sentidos de Simão. Outros homens chegaram perto, pois sentiram, no ar, o cheiro da confusão. Não demorou juntar uma pequena multidão formada por prostitutas, gigolôs, bicheiros, pederastas e moradores.
Simão se viu no centro de uma roda, de frente com um homem de navalha na mão. Não demonstrou medo nem preocupação. Afinal, estava numa “roda” e aquele espaço ele conhecia bem.
Nesse momento, um velho que fazia parte da multidão de curiosos foi abrindo caminho até se pôr dentro da roda e falou:
- Menina, você não filha de Irineu?
Carmen levantou a cabeça, empinou o nariz e disse com irreverência, disfarçando o medo:
- Sou eu sim, e daí?
O mulatão ficou sério e, não disfarçando o ar de desagradável surpresa, guardou a navalha e gritou para a multidão:
- Vão se embora, cambada de vagabundos. A festa acabou. Anda desgraçados ou ainda mato um...
Com a mesma pressa que se juntou a multidão ela se desfez, ficando apenas os três, como no início.
- Se pica, moreno! E leve a menina daqui. Você teve sorte de estar acompanhado da filha de “cumpadi” Irineu. E você, menina, não devia tá andando por estas bandas. Por mim, seu pai não precisa ficar sabendo disso. Tá certo? Disse, com mais um sorriso cínico, mas misturado com um certo receio.
- Se preocupe não, nego, te livro dessa... Falou Carmen, olhando o mulato de cima a baixo, demonstrando desprezo.
Chegaram à praia da Sereia Triste ainda calados. Simão não demonstrava qualquer tipo de emoção ante o acontecido. Simplesmente se perdera em pensamentos.
Escolheram um local sossegado na paria e sentaram-se em paz.
Simão fixava a lua com certo egoísmo. Só ela existia naquele momento. O brilho dourado nas águas calmas da praia oferecia um espetáculo de rara beleza para quem estivesse contemplando aquela obra, fruto do perfeccionismo de Deus.
- Simão, tá chateado com o quê aconteceu? Por quê tá tão calado? Perguntou Carmen meio cautelosa no tom da voz.
- Que foi? Quê que você perguntou?
- Perguntei se você estava chateado com o acontecido. Não deu nem uma palavra.
- Tô bem. Só tô pensando numa coisa.
- Tá pensando no quê você ia fazer quando cheguei na pensão? Pode dizer.
Carmen se levantou e se pôs na frente de Simão, tirando-lhe a visão da lua.
- Você não entende dessas coisas, Carmen.
- De quê? De capoeira? Disse isso aplicando uma baixa meia lua de frente em Simão que, instintivamente (como bom capoeira), se esquivou para o mesmo lado, saindo de rolê e levantando em ginga. Carmen, sem dar tempo para Simão falar nada, aplicou veloz armada, acompanhada de arpão de mão e em seguida uma meia lua de compasso. A todos movimentos de Carmen, Simão ia se esquivando com rolês, cocorinhas, quedas de quatro e resistências, até que resolveu dar um fim ao “jogo” dando rápida e precisa tesoura em Carmen que caiu na macia e morna areia branca.
Ficaram ali, deitados olhando o céu estrelado. Suas pernas ainda estavam entrelaçadas. Carmen respirava profundamente e Simão, procurando a lua com o olhar, perguntou:
- Quê que te deu? Ficou doida?
- Você acha que só você entende de capoeira? Cresci com meu pai que praticamente me obrigava a aprender os segredos do movimento. Depois, quando fiquei sabendo umas verdades sobre ele, saí de casa e fui morar com minha mãe, que recebe a vó que falou contigo.
- Porque você deixou seu pai?
- Porque ele não presta. Nunca prestou e só não saí antes de casa por não saber da verdade mais cedo.
- Que verdade?
Carmen se calou. Deixou-se deitada, olhando o céu. Simão sentou-se ao seu lado e repetiu a pergunta e mais uma vez obteve o silêncio de Carmen como resposta.
Simão ficou observando seu rosto. A lua deixava sua pele ainda mais clara dando bonito contraste com o negro de seus cabelos escorridos. Carmen desviou seu olhar para o de Simão.
- Quê que você tá olhando? Disse com sua natural doçura.
- Nada. É que você é tão bonita.
Carmen olhou fundo nos olhos de Simão. Sentiu o sangue ficar mais quente. A cabeleira de Simão, caída à frente do seu rosto, combinava com seu ar enigmático. Carmen passou a mão macia em seu rosto, livrando sua face morena do cabelo em desalinho.
- Chega aqui, Simão... Puxou-o pela nuca e se uniu a ele num apaixonado beijo. Pegou em sua mão e fez com que ele a percorresse pelo seu corpo. Ela já não controlava as reações naturais manifestadas pelos movimentos de pernas, quadris, cabeça e braços e Simão, ofegante, se deixava levar pelo clima de sedução sob o suposto olhar, invejoso, da Sereia.
Subitamente agarrou Carmen pelos ombros, afastou-a do seu corpo e disse resoluto:
- Hora de ir pra casa.
- Tá zangado comigo, Simão?
- Não. Comigo...
- Simão, fala comigo. Não quero que você fique com uma ideia errada sobre mim. Vem, senta aqui e me fala.
- Carmen, eu vim aqui me encontrar com uma pessoa que há tempo vi no terreiro do meu pai. Eu era uma criança e esse homem tinha chegado com seus alunos. Benzeu-se ao pé do Gunga e, através de uma ladainha, pediu licença para ficar. Fez louvação a velhos mestres, ao mestre da roda e saiu para jogar. Ele era magistral e sua técnica, fenomenal. Um a um, ele foi chamando para jogar sob o olhar atento do velho Euclídes. Como não poderia deixar de ser, o ritmo esquentou, o Gunga falou mais rápido e a energia ficou sem controle. Foi quando começamos a cair e a sentir o sabor do perigo a cada jogo. Numa chula improvisada, desafiou meu pai para entrar na roda: “veja aqui meu camarada, não tem homem nessa roda que enfrente Irineu se tem mestre largue o Gunga e venha jogar mais eu e saiba que se perde o jogo esse Gunga vai ser meu”.
- Isso aconteceu há muito tempo, Simão. O quê você está querendo? Vingança?
- Deixa-me terminar, Carmen... Meu pai sentindo a responsabilidade do momento, entregou o gunga para o contramestre tocar e se baixou no pé do berimbau. Nessa hora, Irineu, agachado, traçava sinais mágicos no chão delimitando seu espaço de proteção através de feitiço. Meu pai, então, entoou uma ladainha de início de jogo. A roda iria, verdadeiramente, começar naquele instante. “ você que veio de longe, é bem vindo pra jogar, se acaso me derrube, no chão não vou ficar. Me levanto sem cair, sem perder o meu olhar e se cuida companheiro, se tu és um mandingueiro sabe bem que chego lá. Não sou dono da verdade. Não sou bom e nem sou mal, mas na roda de Euclídes, mestre é meu berimbau...iê viva meu deus...”
- Meu pai e Irineu começaram jogar rasteiro. Era uma verdadeira troca de apresentações. Cada um ia dizendo quem era e a forma que demonstrava seu caráter através do ritual do jogo. Irineu faz uma “chamada” de costas. Faceiro, meu pai pula para o lado e responde, atento. Recebe uma rasteira, mas o golpe encontra apenas o vento, pois meu pai já havia pulado para o outro lado. Desta vez é Euclídes quem faz sua “chamada”. Desta vez de frente. Braço direito levantado, quase esticado. O esquerdo mais abaixo dobrado tendo a mão esquerda perto do cotovelo direito. Euclídes sorria, nesse momento, o que inquietou Irineu. Este, muito faceiro, chegou por baixo, para responder a “chamada” e fez demonstrando conhecimento e valentia. Mas foi ao chão com a chapa rodada que levou, mas se levantando como se fosse um gato. Dirigiu-se, respeitosamente, para o pé do berimbau, convidando meu pai pra fazer o mesmo. Agora novo início de jogo, desta vez com o ritmo já acelerado saíram para o “jogo de dentro” para concluírem o “duelo”. Irineu, por ser mais novo, era todo velocidade e força e meu pai era todo experiência, de longos anos na “estrada”, e visão. Aquele jogo, Carmen, desde que começou, durou quase uma hora até que, numa quebra do axé, Irineu levou a melhor e meu pai foi ao chão, ao mesmo tempo em que, coincidentemente, a corda do Gunga rebentava. Humilhado, meu pai se deixou ficar. Irineu, nesse momento, silenciou o som, que ainda restava, da roda, pegou o velho gunga do meu pai e falou: - levo comigo esse berimbau, mestre Euclídes, até o dia em que o senhor ou alguém da sua escola o tome de volta... Fez o sinal da cruz ao tocar o chão da roda, se virou para meu pai, fez um gesto qualquer pondo a mão direita no peito e, debochado ou não, falou: axé, meu pai... A gente se vê...
- Já sei. Você veio tomar o berimbau de volta. Disse Carmen, não disfarçando o nervosismo. – É isso que você quer fazer? Quer por sua vida em risco por um pedaço de pau?
- Você não entende, Carmen. Aquele berimbau não é somente um pedaço de pau. É a alma da nossa escola. Era tocado apenas pelo meu pai e seu contramestre...Bom, esquece isso por agora e vamos embora que já é tarde...
Simão chegou tarde na pensão. Foi para o quarto, arrumou suas coisas e decidiu que já era hora de voltar. Isso significava que tinha que tentar achar o que vinha procurar. O gunga do seu pai.
O dia clareou e Simão desceu silenciosamente as escadas velhas da Marisol. Disse à “moça” da pensão que não iria trabalhar naquele dia e que não sabia a hora que iria voltar. A dona da pensão não disse nada, pois notou um brilho diferente no semblante do moreno. Na verdade ela nunca tinha visto Simão com aquela expressão. Pensou que seria bom mesmo que ele não tivesse ali naquele dia. Não com aquele jeito “cavernoso”...
Deu uma volta pela cidade, passou pela Rua Pai João e se lembrou do primeiro dia que havia visto Carmen. Foi até à Praia da Sereia Triste. Mergulhou em suas águas e pediu proteção. Saiu da água, mirou o horizonte por um longo tempo, pensando em tudo e em todos. No céu, gaivotas, alheias aos sentimentos de Simão, passavam a pente fino as areias da praia a procura de algum alimento, algum crustáceo. Mais ao longe, um grande grupo de homens mal vestidos, puxava uma enorme rede que havia sido jogada no mar por um homem em uma jangada. Estes, também, pensando em alimento para a família, cantavam músicas que falavam de Ogum, Iemanjá e de um tal “José” que se perdera nas águas durante a pescaria. Cantavam e puxavam a rede numa combinação perfeita de melodia e caminhar para trás que mais se parecia com uma dança...
Pensamentos se cruzavam e sentimentos eram confusos. Certamente se apaixonara pela bela Carmen. Logo ela que era filha da pessoa a quem iria desafiar na Roda da Conceição.
Irritado, se levantou e, decidido, falou para si mesmo: é hora...
De longe avistou a sempre presente multidão em volta da roda. Respirou fundo e sentiu a adrenalina correr em seu corpo envolvendo-o em um misto de medo, valentia e incerteza.
Foi abrindo caminho pelo povo até fazer parte do círculo menor. Reparou que nem Irineu e nem o Gunga estavam no lugar. Resolveu ficar. Viu que um negrão que estava do outro lado da roda, fazia sinais para ele para que entrasse na roda. Simão apontou para o pé do berimbau e o negrão com sorriso cínico que mostravam uma dentição branquíssima, acenou com a cabeça que sim suspendendo os ombros.
Saíram para o jogo. Simão não demonstrava sua técnica e percebeu que seu “oponente” fazia o mesmo. Estava um verdadeiro “jogo de compadre”. Acabaram o jogo sem se falar e nem mesmo tocar as mãos. Simão sabia sobre as verdades de uma roda de rua. Não há regras e quem entra não sabe se sai...
Os jogos iam sucedendo e Simão, se sentindo mais calmo, mais ambientado, ia controlando sua excitação.
Sem menos esperar, eis que surge Irineu acompanhado de três fortes capoeiristas, certamente seus contramestres, e na sua mão direita o Gunga, símbolo da escola de mestre Euclídes.
Simão sentiu o sangue gelar e ferver numa fração de segundos. Manteve a calma. Sentia-se só e procurou, na multidão alguma cara conhecida. Nada. Continuou a entrar na roda até que um dos três capoeiristas que acompanhavam Irineu resolveu entrar no jogo. Simão sabia que, para chegar até Irineu, teria que o provocar e decidiu fazer isso através dos seus “meninos”. “Comprou” o jogo com o que tinha entrado na roda e começou a colocá-lo no chão. Rasteiras, bandas, arrastões. O homem não parava em pé. Logo o outro ao ver a situação do companheiro resolveu “comprar” aquele jogo. Simão já esperava por isso e não se abalou. Novamente soltou sua mandinga (mas não toda, pois a “braba” estava guardada) e esse, também conheceu de perto o chão. Deus três quedas no valente e Irineu começou a dar mais atenção àquele estranho que bagunçava seus melhores alunos. Fez sinal para que o terceiro entrasse e esse, já mais cauteloso, chamou Simão para uma Angola.
Foram para o pé do berimbau e Simão pediu para cantar, a que Irineu concordou acenando com a cabeça. Simão assim “falou”:
- Eu venho de muito longe, desconheço meu lugar.
Se acaso me procura, sou difícil de encontrar.
Ao senhor mestre da roda, ouça bem o meu falar.
Pode não ficar contente, mas aqui o seu valente.
Também vai escorregar
Se, contudo for manhoso.
E não ter só cara de mau
Jogue comigo sem demora
Na mandinga da Angola
Valendo seu berimbau...
Simão, através de uma chula improvisada, tinha desafiado Irineu a jogar com ele disputando o berimbau.
Irineu não olhou para Simão, mas entendeu o “recado”. Fingiu que não tinha escutado (como bom capoeirista), mas Simão sabia que sim e Irineu sabia que Simão, também como bom capoeirista, também sabia. Estava lançado o desafio no ar, mas faltava a Simão derrubar o último forte na sua frente.
Mesmo antes de sair pra o jogo Simão puxou o refrão da sua chula:
- Chuva vai, chuva vem.
Chuva fininha não molha ninguém...
O valente, na sua frente, franziu a testa e Simão sorria pra ele usando o velho truque da intimidação pelo olhar.
Saíram para o jogo de angola. Desta vez com mais atenção por parte de Irineu, que através do Gunga em sua mão, ia ditando o ritmo de jogo.
Os dois fizeram teatro na mandingaria daquele jogo. Pareciam estar brincando e polícia e ladrão. Num dado momento do jogo, o valente acha Simão em uma cabeçada e Simão, muito receptivo ao jogo, amenizou o efeito, girando o corpo em arpão.
Nessa hora o toque do Gunga mudou para o “Jogo de Dentro” e a brincadeira tomou um ar mais sério. A técnica foi mais exigida pela mudança de realidade. Cutucavam-se em movimentos quase inexistentes para quem não jogasse capoeira, mas com perfeita eficácia na linguagem do jogo que se seguia.
Irineu mudou para São Bento Grande de Angola e tocou um pouco mais acelerado do que o costume. Simão parecia estar em transe e simplesmente se fundiu ao jogo, se tornando o próprio jogo e sem demora, atirou ao ar, o último dos valentes de Irineu.
O coitado não pôde se levantar e se arrastou para fora da roda. Nesse momento, Irineu deu um forte e rápido grito:
- Iê! Tem dois valentes aqui nessa Roda e só tem espaço para um. Quem é você, menino? Perguntou a Simão que, apesar da forte transpiração, respondeu com voz calma e segura:
- Sou apenas filho de um mestre desonrado e estou aqui para pegar o quê, de direito, pertence à nossa escola.
- Tá doido??!! Tá falando de quê?
- Falo do Gunga em sua mão que nunca deveria ser tocado por outra pessoa a não ser pelo homem que o fez.
Irineu sentiu o peso da ousadia do “menino”. Caminhou para o centro da roda onde estava Simão, chegou bem perto e lhe falou num tom seguro e raivoso:
- Tu é muito abusado, menino. Já me lembro. Tu era pequeno quando tomei esse Gunga de mestre Euclídes. Ganhei num jogo de bamba e se quiser levar de volta vai ter que fazer melhor do que fez com esses três inúteis que tu colocou no chão. Tá me entendendo?? Te dou a oportunidade de ir em paz, mas se quiser ficar nessa roda não sei se vai poder sair dela.
- Na roda já estou “mestre”, mas tá faltando música. Disse isso se ajoelhando no pé do berimbau. Irineu olhava para o “menino”, abusado, no “pé da cruz” puxando seu axé através de reza de capoeirista. A multidão, entendendo o momento, aguardava o final em silêncio.
Irineu ordenou com um aceno de cabeça que a bateria voltasse a tocar. Pousou no chão o velho Gunga, bem ao “pé da cruz”, tirou uma navalha do bolso e a pousou, também, no chão, junto ao berimbau, e Simão tirou a sua e pousou-a também no chão. Ambos sabiam que o jogo poderia ser decidido na pernada ou no corte.
Não fizeram segredos. E por isso demonstraram suas navalhas. Novo toque de angola começou e Irineu pediu que fossem diretos para o São Bento Grande.
- Ponha-me no chão, menino, e leva o Gunga de volta para mestre Euclídes.
Simão nada disse, simplesmente fitou, fundo, os olhos negros de Irineu.
Saíram para o jogo. Rápido, violento, manhoso, mentiroso e perigoso. De repente uma queda. Simão foi ao chão. Irineu tinha voltado para o “pé da cruz”. Simão passou as mãos pelas calças, simbolizando uma limpeza e voltou também para o pé da cruz. Saíram mais uma vez. Simão era todo vigor, velocidade e garra. Mas o debochado Irineu se valia da experiência de antigo jogador de rua e, quando não se esquivava, desfazia os movimentos mais perigosos de Simão. Mas uma meia-lua-cortada inesperada o pegou de surpresa na cabeça. Rodou, balançou, mas não caiu.
Desta vez foi Simão que foi para o “pé da cruz” à espera de Irineu, que ao chegar falou: - ainda estou de pé, menino. Mas tá um a um.
Pediu que mudassem o toque e colocou sua navalha na mão dizendo:
- Hora do desempate. Simão respondeu:
- Assim seja. Pegando, também, a sua navalha.
A saída do jogo já não foi de Aú e sim de um pulo, como gato assustado. O jogo agora era mais braço do que perna e as esquivas evitavam o corte. Simão, fazendo uso da sua destreza, conseguiu aplicar uma vingativa em Irineu, que, indo ao chão, se viu com uma navalha colada ao seu pescoço. A multidão gritou em uníssono, sem acreditar no que estavam vendo. Nunca na história das rodas da Conceição haviam visto alguém, se quer, tocar em Irineu num jogo de bamba.
A situação estava dominada. Para Simão havia chegado o momento de decisão. Estava ali, ele e sua “coisa ruim”. A ele pertencia a escolha entre um caminho e outro. Entre a vida e a morte. Numa fração ínfima de segundo, lembrou-se das palavras da Vó. Sua mão vibrava. Olhava para o Gunga no chão e olhava para Irineu, a mercê da sua vontade, da sua decisão e antes mesmo que pudesse decidir, ouviu, vindo do meio da multidão que se acotovelava, talvez ansiosa por ver o sangue lavar a navalha de Simão, um grito de “iê” longo e conhecido. Daqueles gritos que acabam qualquer jogo de qualquer roda. Não acreditou quando viu, vindo do meio da multidão, mestre Euclídes, que tirando calmamente a navalha da mão do filho, lhe disse:
- Esse jogo acabou, meu filho. Vamos pra casa.
Simão não conteve as lágrimas. Não sabia como o pai tinha “aparecido” ali e não entendia nada. Estava confuso num misto de felicidade por ver o pai, assombro pelo inesperado e medo pela condenação por parte do mestre. , sem tirar o olhar dos olhos de Euclídes, disse:
- Eu só queria devolver o Gunga ao senhor, pai.
Simão, ele nunca deixou de me pertencer. A ilusão do fraco é pensar
pode mudar seu destino usando um símbolo de valentia.
Irineu se levantou, olhou para a multidão que lhe evitava o olhar direto, pegou o Gunga e falou:
- É seu por direito, menino. Leva de volta para sua escola e saiba que o jogo ainda não acabou. Estamos, apenas, dando volta ao mundo.
Olhou para mestre Euclídes com estranho respeito e Simão, sem entender o que se passava entre os dois, agarrou o Gunga e saiu na companhia do pai enquanto a bateria recomeçava o ritmo. Agora um toque de Iúna.
De longe, uma figura olhava para pai e filho se perdendo no horizonte. Era Carmen que, sentindo um amor muito forte por Simão, nada fez para impedir sua ida. Nem mesmo o chamou, pois estava segura de o encontrar para seguirem seu destino de amor perfeito. Sabia que isso iria acontecer, pois, muito antes de ter conhecido Simão, toda essa história já lhe havia sido revelada, através dos búzios da vó...
Fim.