A CULTURA DA CAPOEIRA É BRASILEIRA?
A pergunta é interessante e pertinente face ao quadro atual, de expansão além-mares, da capoeira.
América do Norte, Europa, África, Ásia, Oriente Médio são locais no mundo onde já se toca berimbau, se canta ladainha e se joga capoeira além da América do Sul.
Se levarmos em conta de que os sentimentos não são patrimônio cultural de nenhum povo, teremos que considerar que o arrepio do corpo, provocado por um berimbau bem tocado ou o sentimento do axé de uma roda é próprio não do brasileiro, do africano, etc.. mas, sim, do “capoeirista”. Esse, sim, tem todo um código comportamental adquirido pelo tempo passado dentro da capoeiragem sendo, esse código, um elemento formador de uma “cultura capoeirística”.
Logicamente, a língua utilizada nas músicas da capoeira é, invariavelmente, portuguesa e é onde se detecta termos bem adaptados ao jogo, assumindo um conotação própria dentro da arte. “jogo na manha”, “jogo de compadre”, “mandingueiro”, entre outros. Já, inclusive, existe um dicionário onde estão catalogados, alguns dos termos próprios utilizados na capoeira (LIMA, Manoel Cordeiro. Dicionário de Capoeira. Brasília, 2005. Edição do autor. 144p. il. Literatura brasileira.)
Lima reuniu mais de 1.000 verbetes, dos quais 23 conceituam o termo capoeira.
Muitos verbetes foram enviados a título de cooperação para o autor mas que revelam ser de caracter pessoal e não representativos da capoeira como um todo. Sugerem mais como uma “gíria” local do que uma palavra comum a todo capoeirista, como no caso de “mandinga” ou “axé” por exemplo.
É muito comum ouvirmos de algum mestre de capoeira o que ele acha essencial para a boa formação de um capoeirista.
Assim como, no início desse livro, existem várias respostas, pessoais, para determinada pergunta, também, encontraremos várias receitas para se formar um bom capoeirista onde muitos elementos são, inevitavelmente, comuns de uma “cultura da capoeira”.
Faço, agora, alusão a uma antiga música de capoeira que faz parte de um excelente trabalho discográfico chamado “capoeira basam”. A letra diz assim: “para ser bom brasileiro, tem que manter tradição, tem que saber cantar samba e tocar bem violão. Berimbau e reco-reco, é preciso aprender, praticar a capoeira, pra saber se defender...”
Bom, na música, o autor dá uma pequena receita para se ser “um bom brasileiro”.
Se mudássemos o “bom brasileiro” para o “bom capoeirista” será que o restante da música seria o mesmo? Ou seja, para ser um bom capoeirista tem que manter tradição? O bom capoeirista tem que tocar bem violão?
Afinal quais sãos os ingredientes necessários e essenciais na formação do bom capoeirista? É claro que para a resposta a esta pergunta a pessoa que se propuser a responder, terá, em princípio uma definição própria, também, do que seja o bom capoeirista. Mas soltemos perguntas à consideração do leitor:
1. é preciso ser brasileiro?
2. é preciso ser negro, branco, azul, verde??
3. tem que ter um mestre?
4. tem que ter alunos?
5. tem que ter trabalho?
6. tem que viajar?
7. tem que ter histórias para contar?
8. tem que ser africano?
Se mesmo hoje em dia, nos encontramos num dilema para darmos à capoeira uma pátria-mãe permanecendo essa antiga questão sobre ela ser brasileira ou africana, como poderemos, então, definir a nacionalidade ideal do praticante, aspirante a ser “um bom capoeirista”?
Viajando pela Europa (e não só), pode-se encontrar excelentes trabalhos de capoeira, com excelentes alunos que jogam bem, cantam (em português), tocam bem o berimbau, atabaque, pandeiro e se emocionam dentro da roda. E além de bons alunos, já encontramos bons professores de capoeira de nacionalidade diferente da brasileira.
Contudo, há de se fazer uma referência ao fato de quê o professor estrangeiro, na grande maioria, passa a assumir grande parte da cultura brasileira, inclusive elegendo um sotaque brasileiro para definir seu português e, muitas vezes, caindo na armadilha de estar usando determinadas expressões que não conseguem contextualizar de forma pertinente ao assunto de alguma conversa em português.
Concordo e admito que os elementos formativos da capoeira, como arte, é brasileiríssima na sua heterogeneidade. Mas ao aprofundarmos na própria história da formação do provo brasileiro e sua cultura, verificamos, felizmente, o rico legado deixado para nós por muitos povos, de diferentes línguas, comportamentos e costumes e que nos serviram de base sólida na formação dos nossos próprios costumes, crenças, folclores, crendices, nos afirmando, neste contexto de brasileiros.
Porém, no bojo dessa cultura capoeirística eu penso que podemos, dizer que é de comum acordo de que o “bom capoeirista” é aquele que:
Tem tempo de prática (quanto?)
É viajado (e aqueles que não têm condições?)
É conhecido (e os que preferem o anonimato ou uma maior privacidade?)
É mandingueiro
Tem trabalho realizado (que tipo?)
Forma alunos
Toca bem os instrumentos
Sabe cantar e compor
Tem histórias para contar
É honesto
É trabalhador
Etc.
Um passado não muito distantes ainda nos proporciona alguns registros históricos, flagrados pelas objetivas de algum fotógrafo anônimo e, possivelmente, imparcial.
A isenção deste fotógrafo nos deixa claro e sem contra argumentos sobre a característica, acredita-se, sempre expontânea, existente nas rodas de capoeira.
A bateria que dava o ritmo e harmonia à roda, era apenas a bateria sem, aparentemente, uma regra definida sobre a exata localização dos instrumentos que animavam o jogo.
Berimbaus, pandeiros, atabaques, agogôs e outros se complementavam mantendo o ritmo , com certeza, ditado pelo berimbau, mas sem, que para isso, tivesse que, necessariamente, se criado um local exato de onde cada instrumento deveria ficar. (ilustrar com fotos)
Ao voltarmos para o passado em busca de fontes de conhecimentos, nos deparamos com uma situação paradoxal na medida em que reconhecemos enormes diferenças entre um passado que tenta ser a confirmação do presente. Estes dois pólos em termos de continuidade e manutenção do que hoje se chama de tradicional não se complementam e vamos encontrando fatos isolados ou acontecimentos históricos independentes entre si que, no conjunto, pode nos dá uma explicação mais coerente para o que, hoje, se chama de tradicional. Fatores como economia do país, nível de escolaridade, condição sócio-econômica, crença, etc., têm um papel bem forte nos caminhos escolhidos pelo praticante.
No meu ver, um capoeirista de uma cidade satélite do Distrito Federal, por exemplo, tem valores e comportamento, enquanto capoeirista, um pouco distintos de um capoeirista da mesma faixa etária e tempo de prática e morador do Lago Sul.
O paralelo proposto por mim não tem a mínima intenção de comparar para se ter um resultado de “melhor”, “correto” ou mais “tradicional”. Tento firmar minha convicção de que quanto mais falamos de TRADIÇÃO na capoeira, mais encontramos diferenças e contradições flagrantes em quem se apresenta como “defensor das tradições da capoeira”.
No meu ver, a diferença, por ela mesma, é dentro da capoeira um dos elementos que mais contribui para a riqueza e beleza do jogo.
Os nossos velhos mestres em tempos foram jovens praticantes, “meninos” que eventualmente se espelhavam nos velhos mestres do seu tempo, com a agravante de que quase não terem tido contato com possíveis registros deixados por fotos, filmagens e outros, limitados obviamente pela tecnologia existente, sendo instruídos pela passagem de testemunho nas palavras de quem ensinava.
Suas fontes de “pesquisa” e “estudo” eram pela via oral. Pelo que se ouvia dos velhos de então, relatando experiências passadas, histórias de valentia e, acredito, com alguma pitada de crendice popular, muitas vezes exaltando a capacidade extraordinária de alguém ou o poder inexplicável que algum indivíduo tinha de desaparecer ou ser autor de metamorfoses dignas de efeitos especiais cinematográficos.
Cada praticante teve seu nascimento na capoeira em algum lugar do mundo e inevitavelmente aprendeu o “idioma”, a língua, o “capoeirês” próprio deste local.
Assim como os linguistas procuram as raízes etimológicas de alguma língua em estudo, também o capoeirista sente, em algum momento, a necessidade de um estudo da sua origem em função da sua “linguagem” ao exercer o direito de ser praticante.
Procura saber o significado e os “porquês” do bojo de seu conhecimento.
Tradição, folclore, hierarquia, herança, costume, criação, inovação e invenção são palavras que se misturam e confundem o capoeirista menos atento nas “explicações” históricas da capoeira, muitas vezes e infelizmente, manipuladas.
Na maioria dos casos, essa mistura é usada, ao meu ver, de forma conveniente, fomentada pela necessidade da obtenção de alguma vantagem seja ela de que natureza for.
Como brasileiro que sou, amo meu país, minha cultura, minha gente e minha história.
Como capoeirista prefiro não me restringir ao simplismo e armadilhas patrióticas que mais se parecem com disputas por protagonismo histórico. Essa preocupação por rótulos e berços que atestem o domínio de uma arte é nociva à própria expansão de qualquer manifestação cultural pois o mundo está descortinando e expondo, para quem deseja ver, que o fanatismo por alguma ideia gera o fundamentalismo dando largas margens ao preconceito, à xenofobia, à perseguição e ao ódio.
Até hoje, confesso, não sei a verdadeira nacionalidade da capoeira e isso já não é preocupação para mim, mas sei que a “cultura da capoeira”, seja ela formada por elementos que forem, apenas busca a unificação, a igualdade (na roda), a alegria da música, o ritmo que envolve, o transe que acontece sem ser de religião, a diferença que ensina e enriquece, a troca, a internacionalização e a quebra das correntes imaginárias que escravizam, até hoje, brancos, pretos, mulatos, amarelos, vermelhos, verdes, cinzas... e por aí vai.
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